O que o novo mindset dos negócios e o seu organismo podem ter em comum
Business Agility - uma perspectiva
Quando o mundo é visto a partir da condição de uma mente que questiona, cada coisa é vista tanto por si mesma, como ela é, quanto como a detentora dos imensuráveis segredos que uma boa pergunta desbloqueia.
Jane Hirschfield
Minha vida profissional tem sido dedicada ao estudo e à intervenção em processos organizacionais como facilitadora de seu desenvolvimento e transformação. Isso inclui, como um de seus pilares, a capacidade de ler esses processos e suas dinâmicas geradoras, quase sempre habitantes do reino do invisível. Eu trabalho com pessoas, grupos, organizações, intervenho em suas ações e relacionamentos, tentando criar espaços para diálogo e reflexão, de forma que novas perspectivas possam surgir.
Eu acredito que contextos sociais (grupos humanos) são vivos, orgânicos. Sendo vivos, cada contexto social ou organizacional está em constante reprodução, em constante auto-poiesis (1), recriando-se a partir da interação com o seu ambiente, também em inevitável e constante metamorfose. Uma organização é, portanto, um organismo complexo, "resultado da interação dinâmica entre diferentes elementos que se afetam e influenciam, continua e mutuamente, enquanto interage, influencia e é influenciada pelo ambiente em que se insere. É caracterizada por processos não lineares, ao mesmo tempo em que apresenta padrões subliminares. É uma tensão (criativa) entre ordem e caos, forma e fluxo, continuidade e mudança" (2). A organização é aquilo que emerge, dinâmica e continuamente, dessa interação.
Essa perspectiva me levou, há mais de 20 anos, a uma forma muito particular de trabalho, a uma abordagem predominantemente, para não dizer, inteiramente qualitativa, que, em contato com fenômenos sociais - não-lineares, complexos e emergentes - busca apreciar e entender, mais que explicar e controlar. Isto se expressa no desenho e facilitação de processos de consultoria, que primam por ser abertos, desprovidos de regras pré-definidas, mais generativos, guiados por intenção e imaginação, mais que por objetivos e modelos, com seus integrantes em contínuo, aberto e profundo diálogo entre si e com o ambiente em que se inserem. São, paralelamente, auto-reflexivos, no sentido de refletirem periodicamente sobre a própria capacidade de fazer isso. Nestes processos, portanto, não há resultados predeterminados, a ênfase é em um design emergente, que vai se desenrolando, a partir das idéias e observações que surgem desses diálogos e reflexões. Apesar disso, o processo não corre solto, ele é facilitado, há intenção, princípios, perguntas orientadas a aprofundar, buscar, tornar visível. "O processo investiga um fenômeno vivo e precisa ser tão vivo quanto ele" (3).
Foi com esse olhar, de uma prática viva, que eu primeiro tomei contato com o Business Agility e tenho que confessar - esse primeiro contato é recente. Mas algo me deu uma sensação de familiaridade. E acho que foi algo que me chamou a atenção em todos os artigos, vídeos, palestras e apresentações que eu vi nesse curto espaço de tempo - uma proposta de “aliveness” - da busca de um estado interno intenso de questionamento e atenção, de uma abertura disciplinada para constante interação com tudo e todos à sua volta e de uma certa habilidade de pausar e agir a partir de um lugar de “não-certeza" (consciência do que não se sabe, tanto quanto do que se sabe) que, na minha opinião, moldam qualquer resposta inteligente ao mundo que nos rodeia. E tudo isso não como um modo de funcionar individual, mas como uma qualidade organizacional - de resgate de um propósito de atuação (intenção no mundo), do estabelecimento de fronteiras porosas (atenção e disponibilidade para o mercado) e de intuição de um futuro (imaginação - criação de novas possibilidades).
Se eu fosse criar as minhas próprias leis (embora eu ache que escolheria a palavra qualidades), do Business Agility, seriam essas:
Intenção - Ter uma visão clara do impacto que você quer ter no mundo;
Atenção - Relacionar-se com todos à sua volta e ter consciência dos impactos que isso gera em você. Estar aberto a ser modificado por esses relacionamentos;
Imaginação - Acreditar que mesmo que você não tenha visto uma forma diferente de fazer, entender, agir, não significa que ela não exista. Expresse suas dificuldades em forma de perguntas - elas direcionam o foco para o novo.
Incorporando, literalmente, o Business Agility
Entre o estímulo e a resposta há um espaço. Neste espaço está nosso poder de escolher nossa resposta. E nela está nosso crescimento e nossa liberdade.
Viktor Frankl
E o que a nossa fisiologia tem a ver com isso? Na minha opinião, a fisiologia de uma função, em particular, cria as condições orgânicas necessárias para este tipo de atuação mais conectada e relacional: Respirar.
Fazemos isso o tempo inteiro, 24 horas por dia, 7 dias por semana. E o fazemos sem prestar a menor atenção. Isso é possível porque a respiração é controlada pelo Sistema Nervoso Autônomo (SNA), que controla também outras funções vitais e inconscientes como circulação do sangue e controle da temperatura e digestão. Mas nossa inconsciência não se restringe a nossas funções fisiológicas, ela também domina nossas funções cognitivas. De acordo com a neurociência, os seres humanos têm consciência de apenas 5% de nossas atividades cognitivas, portanto, a maior parte de nossas decisões, emoções, ações e comportamentos depende da atividade cerebral que acontece abaixo da linha de consciência. E isso se dá de duas formas importantes:
1 - estamos quase todo o tempo funcionando no piloto automático, ou seja, dando velhas respostas para o que consideramos ser contextos conhecidos - o cérebro tenta encaixar as informações que recebe naquilo que ele já conhece e para o qual já tem uma resposta pronta. Ou seja, no piloto automático, você age a partir da memória e não da criatividade.
2 - vivemos dentro de um realismo ingênuo, achando que as coisas são como parecem ser, mas o cérebro tem grande dificuldade de aceitar o que viola as suas expectativas. Nossas percepções são influenciadas, muito mais, por circuitos já existentes no cérebro que por novas informações recebidas do ambiente. Portanto, todos temos os nossos vieses influenciando nosso relacionamento com o mundo à nossa volta de forma muita mais profunda do que imaginamos - de forma inconsciente.
Tudo isso não é tão ruim quanto parece. Na verdade seria impossível viver sem um bom grau de inconsciência. Entretanto, saber disso, pode nos ajudar a abrir algumas portas.
Voltemos, então, à respiração. Como eu mencionei acima, ela é uma função intimamente ligada ao Sistema Nervoso Autônomo, que, além de controlar diversas atividades inconscientes do nosso organismo, também é responsável pelas respostas automáticas do corpo a mudanças no meio ambiente e abriga a evolução de nosso “sistema de resposta" a esse ambiente, ou seja, a maneira como nos relacionamos com ele a partir da percepção insconsciente do que encontramos.
De acordo com a teoria mais recente da neurociência sobre esse tema, a Teoria Polivogal(4) , a hierarquia dessas respostas tem três níveis, desenvolvidos em nosso processo evolutivo de sobrevivência - A mais antiga, gera respostas do organismo relacionadas à imobilização, à inação, comum em situações de extremo stress ou trauma. Alguns répteis podem permanecer nesse estado por horas para driblar o inimigo. O segundo nível, coordena as respostas características das reações tipo “fight or flight”, ou seja, prepara o organismo para fugir ou enfrentar o perigo. É esse sistema que é ativado quando você xinga alguém que te cortou no trânsito ou corre de um cachorro que escapou da coleira. O terceiro, e mais recente no processo evolucionário, está associado a um nervo dentro desse sistema, chamado nervo vago ventral. Este nível, presente apenas nos mamíferos, nos permite sentirmo-nos seguros e prepara nosso organismo para estabelecer uma conexão com outro ser - "sintonizando nosso ouvido para a voz humana, abrindo e alegrando nosso olhar para dar e receber pistas de conexão social e fomentando sensações de conforto e cordialidade”(5). Portanto, o vago ventral é crucial na transição de situações de estresse, ou de funcionamento automático (quando podemos estar tranquilos, mas totalmente desconectados), onde meramente reagimos e repetimos, para situações de bem-estar, presença e conectividade, onde pode existir response-ability e inovação. Ele é fundamental na construção de nossa resiliência. Pessoas com um tônus vagal elevado relaxam e regulam o batimento cardíaco mais rapidamente, retornando mais facilmente a um estado que possibilita conexão, comunicação e cooperação. E não apenas isso, mas também aprendizagem, criatividade e desenvolvimento.
O maravilhoso de tudo isso, é que, como as tradições asiáticas ensinam há milhares de anos, essa é uma via de mão dupla. A respiração também pode regular o SNA e tonificar o vago ventral, tanto de forma momentânea, quanto mais duradoura, ensinando nosso corpo e nos preparando para interagir com diferentes situações de forma mais calma, positiva e presente, nos tornando mais continuamente disponíveis para a interação e nos levando a um estado fisiológico imprescindível para a inovação. Simples práticas respiratórias, como apenas gradualmente aprofundar, alongar e ritmar a respiração, ou tornar a expiração minimamente mais longa que a inspiração, têm o potencial de abrir um portal para esse “aliveness”, para esse “adaptive interactive mindset”, tão necessário ao contexto atual e tão caraterístico das organizações ágeis.
Regular a sua respiração de forma voluntária, muda as mensagens enviadas pelo nervo vago para o sistema límbico, hipotálamo, tálamo, córtex pré-frontal e redes envolvidas em funções de percepção, interpretação, regulação emocional e cognição. É uma prática simples, útil e segura que induz estados de relaxamento profundo e de atenção e processamento cognitivo aprimorados, que pode ser feita a qualquer momento e em qualquer lugar. Ou seja, é uma prática de auto-regulação que nos ajuda a viver sem stress e aumenta nossas chances de sair do piloto automático. Ela cria a pausa necessária para uma maior conexão consigo mesmo, para entrar em contato com esse espaço entre estímulo e resposta, onde reside nossa liberdade, de que fala Victor Frankl.
Uma de minhas práticas de meditação favoritas consiste em mentalizar: “Ao inspirar me conecto, ao expirar me realizo”, enquanto se foca na respiração. A respiração é a constante alternância entre se conectar e se expressar. Cada respiração consciente pode ser uma experiência de conexão com o outro e de expressão no mundo. E cada pausa entre conexão e expressão é uma oportunidade para dar voz a uma intenção, a um propósito. Cada pausa entre atenção e ação é um momento de escolha que vai dando forma a esse propósito e a uma ação cada vez mais consciente.
Respirar é estar vivo. Praticar a respiração consciente é criar um espaço fisiológico para adicionar intenção ao nosso viver, atenção e porosidade a nossos relacionamentos e imaginação aos nossos sonhos.
Você quer se preparar para atuar numa organização ágil? Pa - re e res - pi - re. Você já achava que era importante? Agora você já sabe porquê. E eu garanto, vai te ajudar muito.
Respirando Organizacionalmente
No mundo da Agilidade Estratégica, aprendemos que não existem mercados maduros: existem apenas mercados aos quais a imaginação ainda precisa ser aplicada.
Steve Denning
Como eu disse na primeira parte desse artigo, uma das primeiras coisas que me chamou a atenção no meu contato com o Business Agility, foi a sua proposta de organicidade - times pequenos, trabalhando em rede, em constante interação com outros times, com decisões descentralizadas, informadas por propósito e princípios de atuação comuns e pela constante e ritmada troca com clientes e mercado. O que me leva à pergunta - qual a fisiologia mais adequada à uma organização ágil? Que práticas internas criam as condições necessárias para esse tipo de funcionamento?
Imagino que centenas de artigos devam ter sido escritos sobre esse assunto. Dentro da minha perspectiva e experiência e como o título desse artigo é “A Fisiologia do Business Agility”, trazer a respiração como analogia para o nível organizacional faz todo o sentido, principalmente quando me deparo com estatísticas que dizem que quatro em cada cinco pessoas se sentem totalmente desconectadas do seu trabalho (6). Uma organização com esse tipo de estatística é uma organização que respira no modo automático - está apenas sobrevivendo. Suas práticas e modo de funcionamento não inspiram a presença do espírito humano e vão promovendo a proliferação de autômatos que são meros fragmentos de nosso potencial (o trocadilho aqui não foi intencional).
Eu vejo o Business Agility como uma proposta de trazer vida e consciência à prática organizacional. Quase como ensinar a organização a respirar… E aprender a respirar, inclui entender que a respiração alterna movimento e pausa - ação e reflexão/aprendizagem.
O Físico Amit Goswami, estudioso da consciência, diz que qualquer processo criativo (e se as organizações não existem para criar, então para quê elas existem?) necessita alternar estados de ser e fazer de forma equilibrada. E, como nos tempos atuais, cada vez mais confundimos velocidade com pressa e preenchemos nosso tempo livre com inúmeras atividades, as pausas, que nos permitem apenas ser, vão se tornando cada vez mais inexistentes. Num artigo da McKinsey que li recentemente (7), os autores sugerem como uma das competências a ser buscada nos líderes de organizações ágeis, a habilidade de “pausar para se mover mais depressa”*. Eu acredito que isso seja ainda mais vital no nível organizacional. Entendo também que a própria proposta de atuação iterativa e cíclica do BA já traga em si a oportunidade para a pausa - faço, interajo, reflito, faço, num ciclo de aprendizagem e criação.
Entretanto, esse ciclo favorece a agilidade no nível operacional - fazer melhor, mais rápido e mais barato - e a inovação também acontece nesse nível. Embora extremamente importante, de acordo com Steve Denning, a próxima fronteira do Business Agility é evoluir da Agilidade Operacional para a Estratégica - onde a inovação ocorre no nível do mercado e novos negócios são criados para novos grupos de consumidores. É desse tipo de inovação que virão os maiores ganhos financeiros. Para criar a nível de mercado, é preciso elevar a postura de aprendiz para o nível estratégico, buscar, investigar, agir a partir de um lugar de “não-certeza” e criar pausas organizacionais que reflitam essa postura. Processos de planejamento mais porosos que permitam reflexão e adaptação, em constante desdobramento e moldados sempre por novas informações.
Em minha experiência com consultoria, em diversos projetos de transformação cultural, pude perceber como é importante se aproximar e escutar o que eu chamo de vozes dissidentes, aquelas com pontos de vista (também no sentido literal) diferentes. Essas vozes, com grande regularidade, se encontram na periferia, em espaços de fronteira - um “lugar de liberdades remanescentes, um lugar indomável, além do alcance das normas estabelecidas”(8). O papel da organização e da liderança é, então, buscar esses lugares de fronteira, dentro da própria organização e no próprio mercado, onde novas idéias podem estar surgindo espontaneamente, e criar espaços para reflexão e desenvolvimento dessas idéias. Como diz Jeff Bezos - "Grandes tendências não são tão difíceis de detectar, mas grandes organizações podem achar estranhamente difícil adotá-las".
Por fim, o que eu chamo aqui de pausas organizacionais, independentemente da forma que elas tomem, é o que permite à organização aprender, dar sentido, ou melhor, criar sentido, do mercado em que se encontra, continuar atuando a partir “de uma consciência compartilhada e uma execução empoderada”(9) e, assim, ser capaz de absorver e responder às constantes e imprevisíveis demandas do mundo VUCA sem se perder de si mesma, mantendo viva sua capacidade de influenciar esse mesmo mundo na direção de seu propósito.
* Embora eu considere que essas “listas de qualidades para líderes”, ou quaisquer outras listas, tenham sua utilidade e, mesmo o foco desse artigo não sendo em liderança, acho importante começarmos a refletir que talvez o momento atual peça o abandono das listas e a maior procura de referências internas e experienciais de como estar mais à serviço dos grupos humanos em que estamos inseridos.
Referências:
1 - Autopoiese ou autopoiesis (do grego auto "próprio", poiesis "criação") é um termo criado na década de 1970 pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios.
2 - The Developing of Capacity - Allan Kaplan
3 - Emerging out of Goethe - Allan Kaplan
4 e 5- The Polyvagal Theory - Dr. Stephen Porges
6 - forbes.com - Explaining Agile - Steve Denning
7 - Leading agile transformation:The new capabilities leaders need to build 21st-century organizations - McKinsey&Company - October 2018
8 - The Developing of Capacity - Alan Kaplan
9 - Team of Teams: New rules of engagement for a Complex World - Stanley McChrystal
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