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Voltando-nos para a luz

Um cultivo do sensível, uma estética da imaginação, uma linguagem dos afetos,

fertilizando uma metamorfose da mente no tempo entre dois mundos


Uma reflexão sobre minha vivência da Dimensão Visão de Mundo do GEDS - Gaia Education Design for Sustainability







E no cultivo do sensível muitas vezes nós não somos jardineiros, mas sim flores.

Como podemos supor que somos criadores e não criaturas de um processo?

O que aconteceria se nos abríssemos para sermos cultivados pela vida, por outras espécies?


Mariana Rotili



Existe um mito celta que conta a história dos Tuatha De Danann e sua batalha contra

um gigantesco exército que invadiu a Irlanda. Essa tribo, hábil em ciências e artes,

poesia e magia, se apresenta para o confronto apesar da mínima chance de vitória. No

momento do ataque, quando o inimigo avança em direção a eles, eles simplesmente

se voltam para a luz do sol, que reflete em seus escudos e os torna invisíveis.

Os Tuatha De Danann não "vencem" através da batalha, esse seria uma luta perdida.

Pela recontextualização do desafio, pela metamorfose do olhar, a luta se faz

desnecessária.


Seria possível nos colocarmos como criaturas no processo da vida e, a partir dessa

identidade de aprendiz, percorrer os terrenos profundos de nossas mentes para

revelar e tornar transparente o que dentro de nós precisa ser transmutado? Se no

interser, na multiplicidade de nossas infinitas relações, a cada momento fazemos

nascer um outro momento, seria possível, frente à batalha que se apresenta, voltar

esses terrenos profundos para a luz, nos conectar a esse mistério ativo e assim

dissolver a luta e imaginar novos caminhos?


Se nossa forma de pensar e compreender o mundo é parte do que estamos tentando

“vencer”, é possível que em nossa consciência habitem, ao mesmo tempo, o velho e o

novo, forjando ideias inacabadas a partir de uma substância em plena metamorfose.

Se é assim, então nos colocarmos como criadores, não é possível sem, como diria Bayo

Akomolafe, perceber a ironia que vem com nossa ação, sem nos abrirmos para a

possibilidade de que a nossa própria forma de responder ao momento atual perpetua

o que estamos tentando transformar.


E se o que o momento atual pede de nós não for ação? Mas uma compostagem de

nossa forma de ver o mundo (como um conjunto de ameaças a serem solucionadas) a

ser usada como insumo no plantio de uma forma de vê-lo que nos implique em sua

possibilidade, entrelaçamento, beleza?


E se localizássemos (trazer para o local) nossas múltiplas crises e as refraseássemos como koans - o eterno convite do zen budismo para a dissolução dos paradigmas e das crenças que aprisionam nossa consciência?


Seria possível, pelo menos por um instante, não fazer nada, sentarmos em círculo, em

nossas comunidades, dentro de nossas biorregiões físicas ou virtuais e compartilhar o

que vemos, sentimos, percebemos? Sem buscar solução, explicação, consenso?

Apenas uma imagem, uma compreensão aprofundada de nós mesmos e dos contextos

que habitamos? E, talvez, fazer disso uma rotina, num cultivo do sensível?



Enough


These few words are enough.

If not these words, this breath.

If not this breath, this sitting here.

This opening to the life

we have refused

again and again

until now.

Until now.


David Whyte




Observar.

Aprofundar a observação em conversa.

A raiz de minha prática Goetheana e de tudo que me tocou no GEDS.

Não seria isso ser flor e não apenas jardineiro? Não seria isso se permitir ser cultivado

pela vida, com a "simplicidade profunda da presença" (Allan Kaplan)?


A uma crítica ao I Ching sobre a mesma pergunta gerar duas respostas, Jung

respondeu - não pode ser a mesma pergunta porque quem questiona já foi

modificado pela primeira resposta.

Heráclito disse - não se pode entrar no mesmo rio duas vezes.


Perceber a vida e o vivo sempre em fluxo.


Seria possível que essa prática (deixar-se transformar alquimicamente pela

observação da vida), em si, já fosse um início de cura? E que essa cura fosse

organicamente se espalhando por tudo o que tocamos, como tinta em tecido?


Que a observação dedicada da vida lá fora nos permitisse re-habitar nossos corpos em

um grande acordar dos sentidos, uma grande jornada de descoberta "dos mundos que

vivem em nós e de nossa conexão inata com um campo formativo infinitamente

criativo, à medida que nos posicionamos, nos movemos e nos relacionamos uns com

os outros em um mundo espacial dinamicamente vivo” (Liz Stocks-Smith)?.


Que o silêncio interno e a receptividade ativa, absolutamente necessários à

observação, nos liberassem para uma estética da imaginação, que nos ajudaria a

experimentar, improvisar e brincar como palhaços artivistas? A buscar obras

inspiradas, mais que tecnicamente perfeitas, como responder a uma batalha com a luz do sol?



Muitas vezes eu toco bem. Poucas vezes eu faço música.


Astor Piazzola



Decidi escrever sentada na varanda. É bem cedo, pouco depois do nascer do sol. A

temperatura ainda é amena, o mundo ainda está acordando, quase tudo ainda é

silêncio. No final desse limiar entre a noite e o dia, vou, gradualmente, deixando meus

planos para avançar nessa reflexão retrocederem para o pano de fundo e me abro

pra vida que se apresenta - pelas sementes no chão, acho que ainda há lagartas na

renda portuguesa, vários botões das impatiens que plantei recentemente se abriram -

as menos protegidas pelo manacá estão sofrendo demais com o calor, sabiás por todo

lado cantam sua alegria com a chegada do dia, uma porta de carro bate, alguém varre

a varanda, a Serra do Japi molda o infinito, uma criança chama pela mãe.


Goethe dizia que a vida pode ser vista pelas formas que cria, que é necessário estar

intencionalmente acordado para seu eterno vir a ser. Steve Talbott, do The Nature

Institute, fala em gestos (eu gosto bastante dessa palavra). Uma flor como um gesto

da vida - semente - folha - flor - semente (e todos os movimentos nos entres) - a vida

floreando.


Ver a vida.


Ver a vida é ver o gerúndio (Goethe disse isso de forma muito mais poética).


Ver a vida é incorporar (sentir no corpo) o tempo da metamorfose, sendo tecido no

aqui-agora, ligando tudo a tudo mais.


Newton olhou para as cores e viu componentes da luz. Goethe olhou para as mesmas

cores e viu "as ações e os sofrimentos da luz". Um viu o substantivo, o outro viu o

verbo.

Robin Wall Kimmerer olhou para um grão de milho e viu o fruto do gênio coletivo, o

acordo entre o sol, o solo, a água, a planta e o fazendeiro. Manoel de Barros olhou

para uma enseada e viu uma cobra de vidro mole.

Thich Nhat Hanh olhou para um pedaço de papel e viu o mundo inteiro.


Como era mesmo a frase?



Como é difícil manter o fenômeno vivo na nossa frente sem matá-lo com a palavra


Goethe



Crise(s).

Uma palavra. Muitos fenômenos.

Onde está o gerúndio?

...


Penso nos gestos do imaginário moderno - ideias cristalizadas em normas e padrões,

projetos modelados e escalados substituindo presença e diálogo, regras mediando

relacionamentos, natureza e pessoas transformadas em recurso.


O estático sufocando o movimento.

Não só lá fora. Também aqui dentro tem uma ecologia ameaçada.


Penso na linguagem que expressa e contém nossas ações de transformação -

planejamento, controle, roadmap, objetivo, conceito, modelo, framework, prazo,

metodologia, ferramenta, dados, certo, errado e o grande mantra que tudo sintetiza -

fazer acontecer. Uma linguagem newtoniana, impregnada por noções mecânicas sobre tempo, movimento, causalidade, mudança.


Como seria uma linguagem Goetheana, que entendesse que relacionamentos

precedem coisas, que movimento precede forma, que fosse viva, flexível e móvel,

grande o suficiente para conter paradoxos e ambiguidades, esses grandes incômodos a

nossos hábitos binários e tão presentes no tecido da vida? Generosa o suficiente para

conter o gerúndio formativo de tudo que é e o invisível infinito do que pode vir a ser?

Uma linguagem em forma de arte (que diferentemente da ciência e da religião não

busca oferecer nenhuma explicação, apenas convida a engajar a imaginação e o corpo no mistério).


Uma linguagem dos afetos.

Uma linguagem poiética/poética.


Em verso...



Mysteries, yes


Truly, we live with mysteries too marvelous

to be understood.

How grass can be nourishing in the

mouths of the lambs.

How rivers and stones are forever

in allegiance with gravity

while we ourselves dream of rising.

How two hands touch and the bonds will

never be broken.

How people come, from delight or the

scars of damage,

to the comfort of a poem.

Let me keep my distance, always, from those

who think they have the answers.

Let me keep company always with those who say

“Look!” and laugh in astonishment,

and bow their heads.


Mary Oliver




E prosa...



I am quite confident that even as the oceans boil, and the hurricanes beat violently against our once safe shores, and the air sweats with the heat of impending doom, and our fists protest the denial of climate justice, that there is a path to take that has nothing to do with victory or defeat...

There are things we must do, sayings we must say, thoughts we must think, that look nothing like the images of success that have so thoroughly possessed our visions of justice. May this new decade be remembered as the decade of the strange path, of the third way, of the broken binary, of the traversal disruption, the kairotic moment, the posthuman movement for emancipation, the gift of disorientation that opened up new places of power, and of slow limbs.

May this decade bring more than just solutions, more than just a future - may it bring words we don't know yet, and temporalities we have not yet inhabited. May we be slower than speed could calculate, and swifter than the pull of the gravity of words can incarcerate. And may we be visited so thoroughly, and met in wild places so overwhelmingly, that we are left undone...


Báyò Akómoláfé



"Se nos abríssemos para sermos cultivados pela vida, por outras espécies", que outro

mundo seria visto por esses nossos olhos renovados?


Se cultivássemos o sensível, déssemos força de arte à imaginação, suavizássemos

nossa linguagem, que novos caminhos esse outro mundo nos apresentaria?


Seria possível?

...



Pode ter havido tempos mais bonitos, mas esse é nosso


Jean-Paul Sartre

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